Bons ventos!
O que aconteceu anteriormente no Coração Gelado?
Willard e Tilda, rei e rainha Gelados, resolvem presentear sua filha caçula, chamada Lena, com o que ela mais queria no mundo: uma irmã!
Tilda estava cansada de ter filhos, então arranjou uma criança na Tribo, onde sobram órfãos e, para ela, nenhuma dessas crianças negaria a chance de viver no castelo com a corte.
Eis que Willard se lembra que mandou punir uma mulher e certa garotinha, irmã de Heik, um ladrão dos campos de descongelamento... Bingo! Eis que Darina se torna a "irmãzinha" de Lena...
Capítulo 5
A
Sala de Estátuas
Willard sentou-se em
frente à lareira enquanto seus filhos se divertiam com qualquer jogo alguns passos
adiante. Estava em uma das duas poltronas que repousavam no tapete de peles,
eram revestidas de couro e tecidos nobres vindos de muito longe. Ele tinha nas
mãos um pequeno pergaminho amarelado, onde estavam escritas palavras vindas do
Reino Subterrâneo. Na poltrona ao lado estava Dorth Tendan, seu velho e sábio
conselheiro, no seu habitual silêncio. O rei terminou sua leitura:
- Tales Triniam foi o primeiro a agir, vossa majestade. – Começou o velho, mastigando
algo com aspecto viscoso nos lábios.
-
Talvez seja melhor assim. – Respondeu mais a si do que ao mundo. - Tales tem uma
filha que pode ser prometida a Dovan, o Reino Subterrâneo sempre foi um temível
inimigo, o que faz seus laços de amizade tentadores, quase irrecusáveis... – Já
ia se perdendo nos pensamentos. - Em três luas o rei subterrâneo estará aqui.
-
Deve se preparar, é seu maior negociante de óleos e madeira, talvez seja uma
boa oportunidade de novas ofertas.
Willard
acompanhou com os olhos as crianças enquanto brincavam.
-
Faz umbrais desde a última visita, Dorth, o rei subterrâneo não costuma vir pessoalmente,
ainda mais com o umbral se aproximando.
-
Virá justamente por ele. - Acrescentou o velho. – Aumente sua segurança.
-
Mandarei que os Observadores estejam presentes, meus soldados são poucos nessas
épocas de recessão, mas um deles vale por cinco dos comuns.
-
Prepare Dovan, majestade, os boatos são de que a princesa subterrânea não tem
dos melhores gênios.
-
Dovan é um rapaz forte, conselheiro, apesar dos deuses terem tirado sua voz, será
um bom rei em meu lugar.
-
Vossa majestade está sempre certo. – Concluiu Dorth. – Vou me recolher , se
precisar de mim estou nos meus aposentos.
-
Tenha um bom descanso.
O
conselheiro deixou a sala lentamente. Assim que desapareceu pelo corredor, Tilda
adentrou a sala e se acomodou ao lado do rei.
-
Parece preocupado, minha vida. – Ela começou.
-
Nada demais. A criança se adaptou bem?
A
rainha ergueu-se como se levitasse e deixou-se cair nos braços do marido.
-
Perfeitamente, perfeitamente. No começo chorava pela mãe e pelo irmão, mas logo
passou com os corretivos certos.
-
Eficiente como sempre querida.
-
Tenho de ser uma boa mãe. – Ela riu.
-
E é a melhor do mundo!
Dovan
sentou-se a um canto isolado dos irmãos e encarou os pais, que o fitavam de
longe.
-
Está na hora de dormir crianças. - Avisou Tilda em tom suave.
-
Podemos ficar mais? –Perguntou Lena, segurando nas mãos de Darina.
Foi
quando a garota foi notada por Willard, esguia, com olhares cabisbaixos e
vidrados.
-
Não. –Respondeu o pai, firme.
Todos
os filhos formaram uma fila em frente ao rei e lhe deram beijos no rosto,
Darina observou tudo de longe, aguardando que pudesse sair. Então todos se
foram.
-
Algo o aflige, minha vida, sei pelo seu semblante. - Insistiu a rainha. – Diga.
-
O rei subterrâneo chegará daqui a três luas para uma visita.
-
Pelos Deuses do Inverno, preciso de vestidos! – Escandalizando-se.
-
Na verdade, minha preocupação vai além do seu vestuário, minha vida.
-
O que lhe preocupa?- Tilda deixou sua curiosidade exceder a breve excitação.
-
Não saber o que exatamente ele quer aqui.
-
Certamente quer oferecer um contrato de casamento.
Willard
concordou com um aceno.
-
Foi a primeira coisa que me veio à cabeça, mas esperava isso do Reino Flutuante
ou do Leito, não de lá...
-
Porque lhe parece tão surpreendente?
-
O Reino Subterrâneo é conhecido por ser fechado entre si, preferir a pureza de
seus soldados.
-
Ninguém pode sobreviver sozinho nesse mundo, minha vida, talvez essa parceria
que está por vir seja reflexo de seu reinado.
Willard
não conseguiu convencer-se por inteiro, mas deitou sua cabeça nos ombros da
esposa e deixou que os pensamentos voassem para longe.
Num
dos grandes cômodos ficavam os quartos reais, ali dormiam as crianças, todas
com suas camas feitas de madeira e cobertas com peles aquecidas. Lena dormia
numa dessas camas, enquanto Darina ficava no chão num pedaço de peles. A
pequena princesa esperou que seus irmãos as deixassem sozinhas e reabriu os
olhos.
-
Suba Darina, está frio.
Darina
levantou-se silenciosamente e deitou-se ao lado de Lena, que a abraçou
carinhosamente.
-
Obrigado. - Respondeu automaticamente, como se aquilo lhe vazasse dos lábios
com dificuldade.
-
Você está triste hoje irmãzinha. – Constatou Lena, se sentando na cama. – O que
foi?
Darina
hesitou, mas falou por fim:
-
Lierce contou que minha mãe está na cozinha, aquele imbecil.
Lena
tapou os ouvidos, depois sorriu timidamente.
-
Não diga isso em voz alta, Darina!
-
Desculpe. – Respondeu, encarando o chão.
-
Ele está mentindo, Lierce tem mania de inventar coisas.
-
Então por que Dovan tapou a boca dele quando o ouviu dizer isso?
Lena
ficou muda.
-
Deixa para lá. – Desistiu Darina, virando-se de lado.
O
silêncio se instaurou no quarto das garotas, até que Lena o interrompeu:
-
Que tal a gente fosse até lá para você ver que meu irmão é um mentiroso?
-
E se pegarem a gente? - Começou Darina disfarçando seu triunfo.
-
Digo que ia beber água.
Ambas
se levantaram em silêncio e passaram pelas portas de madeira do quarto. Lá fora
um guarda dormia encostado sobre a parede de gelo. Lena e Darina passaram pelos
corredores sem fim do castelo até a torre sul, onde se encontravam os salões de
festa e a cozinha logo atrás de alguns lances de escada. Estava tão frio que
seus lábios se chocavam uns contra os outros, enquanto pequenas nuvens
formavam-se a cada respiração.
-
Não faça barulho. - Aconselhou Darina, deixando Lena parada e escondida sobre
um móvel. Então ela correu até o fim do corredor e em seguida voltou o mais
furtivamente que podia.
-
Quero aprender a correr assim. - Comentou Lena, enquanto caminhava em direção à
cozinha principal.
Era
um cômodo espaçoso e cheio de caldeirões forrados com pedras escuras, iluminado
por duas tochas presas à parede, ali era congelante e solitário à noite.
Tigelas permaneciam flutuantes sobre bancadas de madeira e qualquer toque
poderia despertar uma sinfonia barulhenta pelo castelo.
-
Está vendo, sua mãe não está aqui. - Exclamou Lena, quando dois homens surgiram
pela cozinha.
Darina
a puxou com força para debaixo de uma mesa, quando as pernas dos estranhos
cruzaram o lugar até a saída.
-
Essa foi por pouco! - Suspirou Lena. – De onde eles vieram?
-
Eu não sei. – Sussurrou em resposta.
Darina
estudou o lugar mais uma vez, depois ajudou Lena a sair de baixo da mesa.
-
Vieram dali! Parece uma porta escondida no gelo. – Lena sentia-se excitada.
-
Fale baixo! – Quase gritou Darina, então levou as mãos à boca.
-
Nunca entrei ali, vamos espiar? – Sussurrou de volta Lena.
Darina
sentiu o perigo se aproximar, mas resolveu ir até o fim e descobrir o que havia
por detrás daquela porta.
-
Vamos apenas dar uma olhadinha. – Concordou.
A
porta era pesada e sólida, parecia antiga, embora não rangesse com o movimento.
Através dela as duas garotas se depararam com uma sala imensa e escura. Aos
fundos, onde uma janela superior doava um pouco que fosse de luz ao ambiente,
podiam-se ver silhuetas fantasmagóricas sobre o gelo, mas elas estavam tão
quietas que pareciam estar dormindo.
-
Vamos voltar Lena, não estou vendo nada com essa escuridão. - Começou Darina,
enquanto vapor fugia dos seus lábios pálidos.
Lena
desaparecera pela porta da cozinha novamente, então voltara com uma tocha acesa.
-
Vamos explorar, está divertido! - Disse a garota, passando os braços pelos
ombros de Darina. As duas deram poucos passos, que ecoavam pelo salão tão
silencioso. Assim que a primeira silhueta fora iluminada, Lena abafou um
gritinho ao se deparar com uma estátua de um homem que parecia correr. – Que
susto! Essa deve ser a sala das estátuas.
-
Sala das estátuas?
-
Lierce me contou que tínhamos uma sala de estátuas no castelo, e que eu nunca
deveria vir aqui. - Riu-se a princesa. - Meio tarde demais não?
-
São estátuas feitas de que? E por quem?
Lena
deu de ombros e caminhou em meio às outras estátuas e a outra menina a seguiu.
Mais adiante duas garotas feitas de gelo olhavam para trás apavoradas, o que
fez Darina e Lena apertarem suas mãos enquanto seguiam adiante. Foi aí que a
tocha iluminou a estátua ao lado: uma mulher de cabelos negros, que elevava as
mãos na frente do rosto. Darina arregalou os olhos e sentiu vontade de gritar,
era uma expressão de horror que ela conhecia há tempos, eram olhos assustados e
envelhecidos, eram as rugas de sua mãe.
É minha mãe! - Quase berrou.
-
Fale baixo Darina, ou vão nos descobrir. - Pediu Lena, deixando seu tom de voz
ecoar pela sala. – É só uma estátua!
-
Você não entendeu Lena? - Questionou bruscamente a garota. – Por que ia ter uma
estátua da minha mãe aqui?
Lena
iluminou mais rostos até ver garotos pequenos gritando, famílias inteiras
petrificadas enquanto se abraçavam. No escuro aquelas silhuetas não passavam de
galhos estranhos de árvores mortas, mas a luz lhes trazia certa humanidade, o
que era muito mais assustador do que monstros.
-
Por que está falando assim comigo? Eu não estou entendendo o que você quer
dizer. – Disse a princesa começando a desesperar-se.
-
Vou te mostrar. – Retrucou a outra.
Darina
aproximou-se de uma estátua qualquer e a empurrou até que se espatifasse no
chão, espalhando pedaços vermelhos para todos os lados.
-
O que é isso tão vermelho? - Questionou Lena, sem querer ouvir a resposta.
-
É sangue Lena, não são estátuas... São cadáveres!
Lena
caiu de joelhos no gelo, se apoiando com as mãos enquanto vomitava. Darina a
ignorou em um choro contido e cheio de tristeza, depois tocou a estátua da mãe,
tentando alcançar seu rosto. Acabou por escorregar na neve abaixo dos pés.
O
corpo pequeno lançou-se involuntariamente para a frente, derrubando a primeira
estátua da fila contra a segunda. Em pouco tempo um efeito dominó dominava o
salão. Dezenas de estruturas de gelos transformaram-se em milhares de pedaços
vermelhos no chão, num barulho estrondoso. Tochas se acenderam no alto da sala
ao lado, onde uma torre era habitada por Observadores.
Lena
atirou-se no chão, limpando as lágrimas que corriam por todo o rosto.
-
Me dê à mão Darina, estou assustada. – Choramingou, tão apavorada que as
palavras se misturavam em sua voz.
Darina
sentou-se ao lado da princesa, também estava chorando, o frio era uma lembrança
distante. Então a porta atrás delas se escancarou com estrondo e de lá vazaram
dezenas de pessoas munindo tochas. Eram soldados armados, que se aglomeraram diante
da bagunça. Por detrás de alguns deles surgiram Tilda e Willard, vestidos para
o repouso.
-
Lena! - berrou Tilda, indo pegar a garota. – O que fizeram com você?
Lena
mal conseguia balbuciar qualquer palavra, quando abraçou a mãe em prantos. Até
que entre engasgos pronunciou:
-
Darina.
Todos
imediatamente voltaram seus olhares para a garota no centro da sala.
-
Eu... - começou Darina se afastando.
-
Matem essa desgraçada! - Exclamou Tilda, segurando com força a filha no colo.
-
Não! - Rosnou Lena, em seu colo esperneando.
-
Leve ela para os calabouços, depois eu vejo o que farei com ela. - Ordenou o rei,
enquanto encarava o salão coberto de pedaços e sangue. – Quanto desperdício!
Darina
foi agarrada por dois guardas e desistiu de tentar fugir, então desapareceu
pelos corredores entre protestos de Lena, segurada pela mãe.
O
silêncio da noite foi retomando o lugar, até que todos começassem a deixar a
sala, do meio dos Observadores e soldados ali presentes surgiu Dorth, o
conselheiro, vestindo seus trajes de dormir.
-
Alguns viajantes disseram que a caravana do rei subterrâneo está meia lua
adiantada majestade. - Disse num sussurro. – E que... eles vêm carregados por
Pentakos.
-
Isso é impossível. - Rugiu Willard. – Há umbrais que não se tem notícia de
domesticação de Pentakos.
-
Mais importante é que chegarão muito antes do esperado.
- Acharam que nos pegariam de surpresa... - comentou
o rei. – Mantenha-me informado, conselheiro.
Um
dos soldados se aproximou cautelosamente de Willard.
-
Mandarei que juntem os pedaços, senhor. – Foi o que ele disse.
-
O faça, precisaremos de muita comida para a visita real.- começou o rei. –
Calem a garota, mas não a machuquem muito, Lena tem um apreço inestimável por
ela.
O
rei os deixou na sala pintada de vermelho, enquanto o choro de Darina podia ser
ouvido ao longe, ecoando pelas geladas paredes do castelo. Os soldados
dividiram-se em pequenos grupos e foram atrás de seus afazeres. Nas escadas,
Tilda subia ao lado de Lena, ainda em estado de choque.
-
Acalme-se, minha vida. - Disse ela, tornando seus olhos marejados. – Ela terá
sua punição, eu juro minha garotinha, eu juro.